Setembro, mês da Bíblia

retiro do clero 2011 016

Animo Bíblico para a nossa Pastoral

Com grande frequência nos nossos encontros de estudos e reflexões na nossa Igreja Católica o Documento de Aparecida é uma referência inspiradora. Dele são extraídas muitas expressões, muitas intuições, muitas reinterpretações. É um documento de fortes matizes renovadores. E por renovação se entende aqui resgatar aquela vitalidade genuína, aquela criatividade alegre, que foi própria dos cristãos dos primeiros dias da Igreja. Entre as palavras de Aparecida que gradativamente encontram expressão nos anseios da nossa gente está aquela chamada "animação bíblica da pastoral".

 

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Parece interessante observar o sentido da expressão a partir de sua etimologia. Por este caminho é possível vislumbrar o que se quer acentuar. O termo latino animus refere-se àquela força interior, àquele princípio espiritual que, a partir de dentro, move ou motiva alguém a determinadas escolhas e ações. É como que a alma que suscita dinamismos em favor de uma causa.  O contrário é "desânimo", falta de vigor, de alegria, falta de encanto. E no Documento de Aparecida (n. 248), quando se propõe a animação bíblica da pastoral, a mesma vai apresentada com algumas sentenças adjetivas tais como "fonte de evangelização", com "alimento com o Pão da Palavra", com "encontro com Jesus Cristo vivo". Basta observar as imagens de fundo: se secar a fonte, secará o córrego. Se faltar alimento, debilita-se o corpo. Se faltar encontro, vai-se a amizade.

 

Ainda caminhando pelos trilhos da etimologia, muito ajuda a perceber o sentido originário do termo "pastoral". Pastoral vem de pastor, que, por sua vez, está ligado a pastagem. E a tal da pastagem é dotada de uma grande força simbólica, associada à vida, à serenidade, à paz. Um dos melhores retratos do Antigo Testamento é o Sl 23: "O Senhor é o meu pastor, nada me falta". Em seguida afloram expressões figurativas como "descansar em verdes prados", "conduzir a águas tranquilas", "restaurar forças", "guiar pelo caminho certo", "bastão e cajado" que dão segurança, "mesa farta", "habitar na casa do Senhor". É este o linguajar do tempo dos salmos para falar de um bom pastoreio. É marcado por experiências ricas de esperanças "restaurar forças", de vida generosa e abundante "verdes prados", de paz "descanso", "águas tranquilas". Resultam da gratuidade de Deus, que se volta atento para o seu escolhido. É esta a experiência do salmista.

Por outro lado, muito já se falou que a humanidade atravessa um severo processo de transformação cultural. O mesmo já recebeu muitos nomes. Aqui, para simplificar, será mencionado apenas aquele já bastante conhecido: a chamada mudança de época. Este fenômeno é impossível mensurar. Tampouco se pode freá-lo. Seus desdobramentos suscitam, a cada dia, novas surpresas e perplexidades. Em meio a toda esta ebulição, quase tudo faz pensar que nos encaminhamos para a passagem de uma realidade de cristandade para outra de diáspora. Há muitos elementos a nos sugerir que, em termos de evangelização, teremos muitas proximidades com os caminhos e situações do cristianismo primitivo. E tudo isso está a instar os discípulos missionários do nosso tempo a indagações sobre os melhores percursos a palmear quando se trata de "transmitir a fé". Afinal, é ela, a transmissão da fé em Jesus Cristo, a razão fundante de toda a ação evangelizadora.

Os primeiros cristãos não falaram de animação bíblica da pastoral. Mas a sua evangelização era profundamente bíblica; inteiramente perpassada pelas experiências e revelações bíblicas. Para anunciar a pessoa de Jesus Cristo, o Salvador ressuscitado, todas as esperanças do Antigo Testamento eram evocadas.  Era assim nos dias dos apóstolos. E quando o anúncio do Evangelho recebeu sua formulação escrita, então quase tudo era matizado pelas palavras dos evangelistas e daqueles que tinham estado com Jesus. Suas narrativas se tornaram palavra bíblica. E esta Palavra inspirou os escritos catequéticos e as reflexões dos grandes homens dos primeiros cinco séculos do cristianismo. Era a Bíblia, ou melhor, a Palavra, a conferir motivação, a dar ânimo, a suscitar força perseverante e transfigurar o sentido da vida dos cristãos daqueles tempos. Porque afinados com a Palavra, seu modo de pensar, de projetar, de realizar e de celebrar, era inteiramente impregnado da força transformadora gerada pelo encontro com o Senhor mediante a Palavra. Eram evangelizadores "biblicamente animados". Muito animados.

Pois bem, agora pode-se tentar algumas achegas à expressão "Animação bíblica da Pastoral". Antes, porém, cabem algumas premissas: animação bíblica quer se referir a ânimo gerado a partir da Palavra. Palavra é "pessoa". Não se trata, pois de "animar-se" a partir das ideias ou das estratégias de Jesus. Tampouco se trata apenas de estudá-Lo. O discípulo não ama a pessoa de Jesus simplesmente porque o estuda. Estudá-Lo é possível até sem ser discípulo. Um exemplo será de grande ajuda agora: quem conhece mais um adolescente? Sua mãe, que muito o ama, ou o psicólogo que o examinou com todos os métodos das ciências do comportamento? É evidente que a mãe conhece melhor. Ela procura o especialista porque ama o filho; não o inverso, não procura o especialista para poder amar o filho. Ela e ele necessitarão, provavelmente, da palavra especializada, mas é nas relações de partilha afetuosa e interpessoal que o adolescente e sua mãe se construirão. Isso não se dá com ciência, mas nas experiências de amor vivido.

Em sua bela exortação pós-sinodal, o Papa Bento XVI se refere explicitamente à Animação Bíblica da Pastoral (n. 73). E explica que não se trata de sobrepor um ou outro evento singular a respeito da Bíblia. Ninguém pode falar convincentemente de uma pessoa sem ter-se encontrado com ela. Seria apenas "falar por ouvir dizer". Seria apenas informação. E ninguém evangeliza oferecendo informações sobre Jesus. Para transmitir a fé, para anunciar a pessoa de Jesus, é necessário tê-lo encontrado; é preciso tê-lo experimentado; é preciso se deixar alcançar por Ele. É vivenciar o fascínio deste encontro, que nunca será "neutro". Sempre haverá alguma reação-resposta. Alguns personagens dos evangelhos podem nos ajudar: Nicodemos (Jo 3,1-21), a Samaritana (Jo 4,1-12), Zaqueu (Lc 19,1-10), também Paulo, nunca mais foram os mesmos. Tornaram-se "agentes de pastoral" profundamente assinalados pelo encontro com o Senhor.

Pois bem, por Animação Bíblica da Pastoral não se quer enunciar novos formatos, novos esquemas e organismos, novas sistematizações organizacionais de paróquias ou dioceses. Mais do que tudo, e antes de qualquer outra iniciativa, por animação bíblica se pretende dizer que todos os agentes evangelizadores, seja eles bispos, padres, religiosos, catequistas, ministros extraordinários, coordenadores, administradores de quaisquer instituições eclesiásticas, que todos tenham o "ânimo", a linfa interior originada do encontro com Ele mediante a Palavra. E quem o encontra alegra-se com Ele, fala com Ele, compreende com os critérios e valores dEle, interpreta com Ele, assume as escolhas dEle. O agente de pastoral biblicamente animado não passa a fazer mais coisas, ou ter mais outros compromissos de agenda. Não é um modo de fazer. É um modo de ser diante de Jesus Cristo e, por causa dEle, um novo modo de ser diante dos outros.

Não se trata de intimismo. O intimista está à procura de suas conveniências mediante gratificações subjetivas de tipo religioso ou místico. Trata-se sim de intimidade com Jesus. A intimidade cria e aprofunda relações, transforma corações, recria ou renova opções e também move a ações. A intimidade com Ele traz paz e alegria. E se difunde a partir de quem a experimenta. Bento XVI assim se expressou referindo-se a animação bíblica: Que "se tenha realmente a peito o encontro pessoal com Cristo que Se comunica a nós na sua Palavra. Dado que ‘a ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo\', então podemos esperar que a animação bíblica de toda a pastoral ordinária e extraordinária levará a um maior conhecimento da Pessoa de Cristo, Revelador do Pai e plenitude da Revelação divina" (Verbum Domini, 73).

O que fazer para que nossos evangelizadores sejam "biblicamente animados"? Trata-se fundamentalmente de espiritualidade bíblica. Esta pode ser cultivada de diferentes modos. Vale lembrar que a Palavra tem uma "potência sacramental" (cf. Verbum Domini 56; 195) ou seja, ela realiza o que pronuncia. A liturgia, celebrada como verdadeira linguagem do mistério da pessoa de Jesus e a Leitura Orante da Palavra apresentam-se como as melhores possibilidades para que os discípulos de hoje, do mesmo modo como os da primeira hora da Igreja, evangelizem biblicamente inspirados.


Dom José Antonio Peruzzo
Bispo de Palmas e Francisco Beltrão/PR
Presidente da Pastoral da Pessoa Idosa

Fonte:http://www.curiadiocesana.com.br/palavra_pastor.php